TRIBUNA DA DEFENSORIA: Assistência qualificada à vítima? Que bobagem! As rosas não falam!

ASCOM/DPEMS

O eterno Cartola nos inspira com a referência às rosas (que não falam) para colaborar com a discussão sobre a assistência qualificada, iniciada na coluna de Maurilio Casas Maia, semana passada, aqui na ConJur.

A figura, que não é decorativa, encontra fundamento jurídico na Constituição, na Convenção Belém do Pará, na Convenção sobre Eliminação de Todas as formas de Violência contra a Mulher, em julgados da CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos), e nos artigos 27 e 28 da Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, que prevê a defesa integral das mulheres em situação de violência doméstica e familiar em todas as fases do processo.

Importante assinalar que o modo como a assistência qualificada tem sido construída pelas Defensorias Públicas de todo país, pelos Nudems (Núcleos Institucionais de Promoção e Defesa da Mulher), pela Comissão de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher do Cndege (Conselho Nacional de Defensoras/es Públicos Gerais), pela Comissão dos Direitos das Mulheres da Anadep (Associação Nacional das Defensoras/es Públicos), possibilitando que a instituição tenha maior caráter democrático, sendo capaz, em alguma medida, de transformar agendas feministas em demandas jurídicas.

 Ao agir dessa forma, a Defensoria Pública não somente atua de modo responsivo como contribui para que as decisões judiciais possuam maior legitimidade, na medida em que funciona como catalisadora do diálogo entre movimento feminista e judiciário. Cite-se como exemplo, o fato de a Defensoria Pública ter sido a única Instituição do Sistema de Justiça que se posiciona pela preservação da competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, na forma como foi prevista pelo artigo 14 da Lei 11.340/06.

Com o advento da Lei do Feminicídio, Lei nº 13.104/2015, que torna o homicídio de mulheres uma forma de homicídio qualificado e o coloca na lista de crimes hediondos, quando o assassinato/tentativa envolver violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima, buscamos ampliar esta atuação ao Júri, que tem regramento próprio, mas bem anterior à Lei Especial 11.340/2006.

É notória a revitimização de mulheres em situação de violência ocorrida nos ambientes do Sistema de Justiça. A recente Lei 14.321/2022, conhecida como Lei Mariana Ferrer, veio a corroborar a necessidade de atuarmos nos moldes da assistência qualificada, ao lado de mulheres que, constantemente, sofrem violência institucional, advindas da reprodução de estigmas de gênero no cotidiano forense, fato que faz com que sejam desqualificadas e moralmente julgadas, sobretudo quando são vítimas de violência sexual.

Ameaçadas por seus algozes, violentadas física, emocionalmente, isso quando sobrevivem à morte, as vítimas de violência de gênero são, ainda, aviltadas em seus direitos, invisibilizadas em suas peculiaridades e reduzidas a mero instrumentos de prova pelo Sistema de Justiça e seus atores, que visam, antes de tudo, ou unicamente, a condenação do réu, o que, saliente-se, muitas delas sequer gostariam que acontecesse.

A Lei 13.869/2019 (Lei Contra o Abuso de Autoridade) já trazia alguns conceitos de violência institucional, ou seja, o termo não foi inaugurado com a recente Lei 14.321/2022. A título de exemplo, a Lei 13.341/2017 — que tutela o sistema de garantias e direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência — no seu artigo 4, IV, prevê que, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas, são formas de violência "a violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização".

A nova lei seguiu os passos da Resolução 254/2018 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça)que em seu artigo 9º define a violência institucional contra as mulheres como qualquer ação ou omissão de qualquer órgão ou agente público, que no exercício de suas funções, fragilize, de qualquer forma, o compromisso de proteção dos direitos das mulheres.

A recente decisão do Paraná, proferida na Correição Parcial Criminal n° 0056504-39.2022.8.16.0000, 1ª Vara do Tribunal do Júri de Curitiba, inicialmente, a partir de olhares não interseccionalizados, menos aguçados no que chamamos "lentes de gênero/raça/classe", parece alcançar a assistência qualificada da vítima, nos moldes que vem sendo traçada ao logo desses quase 17 anos da Lei Maria da Penha, especialmente no âmbito da Defensoria Pública nrasileira, mas, muito ao contrário, sua conclusão/decisão é temerária, pois intenta colocar-nos severa mordaça e reduzir a amplitude da assistência qualificada a mero instrumento de proteção figurativa da vítima, um status de mais uma "rosa que não fala, apenas exala o perfume que roubam de ti".

A quem serve nos querem inertes, silenciadas/os sem nada podermos questionar, impedidas/os de produzir provas, quesitar, recorrer, a não ser que nos habilitemos como assistentes de acusação? Certamente não serve às mulheres em situação de violência! Concordar com esta decisão seria um grande retrocesso na construção dos direitos humanos das mulheres, para dizer o mínimo, pois está longe de acertar quando reduz a figura da assistência qualificada à mulher (que pode se dar, inclusive, na defesa de sua memória!) a um mero enfeite na cena do processo, que deverá manter-se calada/o atuando apenas nos bastidores acompanhando e orientando à vítima.

Essa atuação apequenada, cuja limitação, esta sim, não tem previsão legal, não garante proteção efetiva à integridade psíquica, emocional e/ou física da mulher, não se traduz no atendimento específico e humanizado ordenado pela Lei Maria da Penha, reafirmados pelo Protocolo Mínimo de Padronização do Acolhimento e Atendimento da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Condege, porque não faz ecoar, após a escuta qualificada promovida pelas defensoras/es, a voz da pessoa vulnerável que teve seus direitos humanos violados.

É exemplo típico da revitimização secundária que perpetua o sentimento de descrédito das mulheres que sofrem violência de gênero em relação ao Sistema de Justiça. Importante mencionar que o Ministério Público atua como fiscal da lei, sendo, guardião dos interesses da sociedade. De modo diverso, a assistência qualificada garante a defesa e resgate dos interesses individuais da vítima ou, nas palavras de Soraia Mendes, trata-se de um sujeito processual sui generis, verdadeira guardiã dos direitos no curso do processo (Soraia, p.113).

O acompanhamento e a orientação jurídica, por óbvio, fazem parte do conteúdo das prerrogativas contidas na assistência qualificada. As mulheres assistidas pela Defensoria Pública ao longo da ação penal devem ser orientadas sobre os trâmites do processo, as consequências de uma absolvição ou condenação, o impacto em relação às medidas protetivas de urgência, informadas sobre o ciclo de violência e encaminhadas para o atendimento visando a propositura de eventuais ações civis.

Sem poder perguntar, reperguntar para a vítima, para as testemunhas ou informantes, sem poder interrogar o réu, juntar documentos, indicar, contestar e contextualizar provas com perspectiva de gênero, oferecer alegações finais, apresentar recursos, alegar nulidades ou trazer a voz da vítima ou sua memória para o Tribunal do Júri dentre outros, a Defensoria Pública não cumpre sua função institucional, determinada no artigo 4º, XI, da Lei-complementar nº 80/94, de exercer a defesa dos interesses individuais da mulher vítima de violência doméstica e familiar e esta será encarada apenas como objeto de prova na busca da condenação no processo criminal.

Da mesma forma, quando o MP e Poder Judiciário tentam restringir essa atuação ampla e efetiva da assistência qualificada, contraria a Recomendação Geral n. 35 do Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw), do qual o Brasil é signatário, e que recomenda que os Estados-Partes tomem medidas nos domínios da prevenção, da proteção, da acusação, da punição, da reparação, da coleta e do monitoramento de dados e da cooperação internacional para acelerar a eliminação da violência de gênero contra as mulheres, devendo essas medidas serem implementadas com uma abordagem centrada nas vítimas/nas sobreviventes, reconhecendo as mulheres como sujeitos de direitos e promovendo sua atuação e autonomia, incluindo a capacidade evolutiva de meninas, desde a infância até a adolescência. Além disso, o Comitê recomenda que os Estados-Parte implementem medidas no que se refere ao processo e à punição para a violência de gênero contra as mulheres de forma a garantir o acesso efetivo das vítimas às cortes e aos tribunais.

Balizar essa atuação, repisa-se, sem previsão legal, contrariando os direitos humanos das mulheres postos claramente nas convenções internacionais, na própria Constituição e na Lei Maria da Penha que nos artigos 27 e 28 traz como mandamento que se busque alterar a situação de vulnerabilidade da mulher, é utilizar o direito contra a vítima que novamente será calada e desconsiderada como sujeita de direitos e mais, é utilizar o processo como instrumento de retrocesso, como instrumento que contraria a busca pela equidade de gênero e de uma sociedade mais justa e democrática.

Mulheres, queixem-se às rosas, que bobagem as rosas não falam!

____________________

REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Pólen, 2019.

BRAGA, Maria Helena Pedro. O silêncio é cúmplice da violência: violência doméstica e saúde pública. Disponível em: <http:/www.umaqualquer.cjb.net> Acesso em: 07jan. 2020.

BRASIL. Lei Maria da Penha. Alice Bianchini, 2.ª Edição. Editora Saraiva, 2014.

BRASIL. Diretrizes Nacionais do Feminicídio. 2016. Disponível em <http://www.onumulheres.org.br/wpcontent/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio.pdf>.Acesso em 05 jan. 2020.

BELL, Hooks. E eu não sou uma mulher?: Mulheres Negras e Feminismo. 1ª ed.,Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

CONDEGE, Protocolo Mínimo de Padronização do Acolhimento e Atendimento das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar; Comissão de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher do CONDEGE, 2015. 

CRENSHAW, Kimberle. A Intersecionalidade da Discriminação de Raça e Gênero. Revista Estudo Feministas n. 01, 2002.

DAVIS, Angela. Mulheres, Cultura e Política. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

DEFENSORIA PÚBLICA GERAL, Coordenação de Defesa da Mulher. Gênero, Sociedade e Defesa de Direitos: A Defensoria Pública e a Atuação na Defesa da Mulher. Rio de Janeiro, 2017.

DJAMILA, Ribeiro. Lugar de Fala. São Paulo: Pólen, 2019.

LEWIN, Ana Paula de Oliveira Castro Meirelles; PRATA, Ana Rita Souza. Da atuação da Defensoria Pública para Promoção e Defesa dos Direitos da MulherRevista Digital de Direito Administrativo, 2016.

MENDES, Soraia da Rosa. Processo Penal Feminista. 2ed. Barueri (SP): Atlas, 2021.

SEVERI, Fabiana Cristina. Justiça em uma perspectiva de gênero: elementos teóricos, normativos e metodológicos. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/306338147_Justica_em_uma_perspectiva_de_genero_elementos_teoricos_normativos_e_metodologicos>. Acesso em 07 jan. 2020.

Jeane Magalhães Xaud é graduada em direito pela Faculdade Cândido Mendes (RJ); pós-graduada em Direito Público; mestra em Sociedades e Fronteiras UFRR; membra Fundadora da ColetivA Mulheres Defensoras Públicas do Brasil; membra da Comissão dos Direitos da Mulher da Anadep; Defensora Pública Estadual de Roraima.

 é defensora pública e coordenadora do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-SP), graduada pela UFPI (Universidade Federal do Piauí) e membra da Comissão da Mulher do Condege.

Thaís Dominato Silva Teixeira é defensora pública no Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem-MS), graduada em Direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo, de Presidente Prudente (SP)(2002); pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito (2011); pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS, 2021; membra da Comissão da Mulher do Condege.

Graziele Carra Dias é graduada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco (2003); pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Escola Paulista de Direito (2011); pós-graduada em Direito do Estado e das Relações Brasil; membra da Comissão dos Direitos da Mulher da Anadep; Defensora Pública do Estado do Mato Grosso do Sul.

Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2023, 8h00

 

Top